Talvez você já tenha ouvido falar na mecânica quântica, o ramo da física que lida com fenômenos na escala nano, ou seja, do infinitamente pequeno. Ou, quem sabe, jamais ouviu falar nela. Talvez – embora isto seja altamente improvável – seja uma autoridade no assunto. Ou então, considerando que está lendo uma coluna em um sítio devotado à tecnologia, é possível que tenha vagas noções do que ela trata mas não as entendeu completamente devido à quantidade de conceitos inusitados, absolutamente novos e até bizarros que a teoria encerra. E se esta última descrição reflete seu estado de espírito frente à mecânica quântica, já temos algo em comum, posto que é exatamente assim que me sinto em relação a este abstruso ramo da ciência.
É bem verdade que que tentei saber mais sobre ela para, quem sabe então, entendê-la. Escarafunchei artigos, li livros, fucei aqui e ali. Não deu. O máximo que consegui foi saber da existência de determinados fenômenos – o que não significa entender sua natureza.
Consegui saber, por exemplo, que da mecânica quântica faz parte o conceito da dualidade onda/partícula, que afirma que toda partícula elementar exibe também as propriedades de uma onda, comportando-se em certas situações como se onda fosse, em outras como partícula. Caso você se dedique a estudar o assunto e tenha algumas noções prévias da física clássica, conhecer estes fatos (o que não significa entendê-los) é perfeitamente possível. Especialmente após observar alguns fenômenos relativos à luz, onde ela se comporta às vezes como um fluxo de partículas (fótons), em outras como ondas de energia.
Agora: entender por que cargas d’água a luz exibe este comportamento, aí já é outra coisa.
O mesmo ocorre com outros eventos igualmente estranhos e quase esotéricos como o fato de que a simples observação de um fenômeno quântico pode alterar o próprio fenômeno – o que fica claro (mas não menos estranho) quando se considera que fenômenos quânticos ocorrem com partículas da mesma natureza que a luz usada para observá-los que, portanto, pode interferir com o fenômeno observado. E que praticamente tudo o que se pode saber sobre o comportamento de partículas na escala nano baseia-se no “princípio da incerteza”, ou seja, na probabilidade de que a partícula se encontre em uma determinada posição com certa quantidade de movimento (“momentum”). Veja, na Figura 1, obtida na Wikipedia, a função ondulatória (“Wave Function”) que mostra a probabilidade que um elétron na órbita atômica 5d de um átomo de hidrogênio esteja em uma determinada posição. Se você não entendeu, não se preocupe. Eu mesmo levei um bom tempo para entender e, para ser absolutamente franco, até hoje não tenho certeza que entendi direito. Mas a figura é tão harmônica que não pude deixar de exibi-la.
No que me diz respeito, quando percebi que o ritmo no qual meu conhecimento progredia me autorizava a prever que o tempo faltante para chegar ao entendimento pleno do assunto superava de muito minha expectativa de vida, reduzi drasticamente minhas leituras sobre mecânica quântica – embora continue me interessando vivamente pelo assunto. E não estranhem meu interesse por algo que não entendo, já que isto é mais comum do que parece. Por exemplo: sou capaz de apostar que entre meus leitores – me refiro à parcela masculina dos que me leem – pelo menos o maior número deles (como convém ressaltar nos dias de hoje) se interessa por mulheres. O que comprova a hipótese de que é grande o número de indivíduos que exibe interesse por aquilo que não entende.
Mas voltemos ao terreno menos perigoso da mecânica quântica: como ela veio parar em uma coluna que em tese deveria discutir computadores?
Logo veremos. Mas antes devemos abordar outro tema que vai nos ajudar a entender esta relação: a história do cálculo infinitesimal.
Vamos começar por uma questão simples: em quantas partes você pode dividir um objeto? Digamos, uma corda, para simplificar.
Não parece tão difícil. Senão, vejamos: para começar, podemos cortá-la pela metade, dividindo-a em duas partes. Depois, corta-se cada parte ao meio e chegamos a quatro. E prosseguimos assim até obter oito partes, dezesseis, trinta e duas e assim por diante.
E como o bom senso indica que sempre se pode dividir algo em duas partes, fica fácil concluir que pode-se partir a corda (ou, aplicando o mesmo raciocínio, qualquer outro objeto) em um número infinito de partes.
Mas…
O que você tem a me dizer sobre o tamanho destas partes? Ou, no caso da corda, sobre o comprimento de cada parte?
Para começar, pode-se afirmar sem receio que este comprimento torna-se cada vez menor, e menor, e menor…
Mas até quanto?
Bom, o menor comprimento que se pode imaginar, seja lá qual for a unidade de comprimento adotada, é zero. E o bom senso nos leva a afirmar que, terminada a divisão, ou comprimento da menor parte é zero ou é maior que zero (não importa quanto maior venha a ser: um poucochitozinho de nada já serve).
Agora vamos retroceder, ou seja, partir do comprimento da menor parte para chegar ao comprimento do todo (no caso, a corda).
Se a menor parte for zero, o dobro dela também será zero, cujo dobro também é zero, e assim por diante. O que significa que, por maior que seja o número de partes em que se dividiu a corda, seu comprimento total quando a primeira divisão ocorreu era zero. Ou seja: não havia corda. E como isto contraria nossa premissa, é impossível. Logo, o comprimento da menor parte não pode ser zero.
Portanto, há de ser maior que zero.
Ora, mas se o comprimento da menor parte é maior que zero, então ela ainda não é a menor parte, já que qualquer coisa com comprimento maior que zero pode ser dividida em duas metades. Logo, o comprimento da menor parte não é maior que zero. E como também não pode ser menor que zero (neste contexto, não cabe o conceito de “comprimento relativo”), a menor parte não existe.
Mas tem que existir, pois no início havia a corda inteira que foi dividida em partes…
Então…
Então o que?
Então chegamos ao paradoxo do infinitesimal.
Pois bem agora que sabemos em que consiste o paradoxo do infinitesimal, em vez de discutirmos sua solução – o que foi feito com maestria por gigantes da matemática como Leibniz e Newton, criando o cálculo diferencial e integral – vamos ver como a simples discussão sobre ele exerceu uma surpreendente influência na formação de nossa civilização.
Pois foi exatamente isso que o historiador Amir Alexander, da Universidade da Califórnia em Los Angeles, faz em seu livro “Infinitesimal: How a Dangerous Mathematical Theory Shaped the Modern World” (“Infinitesimal: como uma perigosa teoria matemática moldou o mundo moderno”). Veja-o na Figura 2.
A questão do infinitesimal, um número tão pequeno quanto se queira, mas necessariamente maior do que zero (que, como você acertadamente constatou, é o comprimento do menor pedaço em que se pode dividir um objeto) foi levantada no século XVI por John Kirkby, que o definiu como: “aquilo que é infinitamente menor que qualquer quantidade concebível; é como um grão de sal comparado com o globo terrestre, ou um instante de tempo comparado com um milhão de eras”, proposição engenhosa que dá uma ideia razoável do que vem a ser um infinitésimo mas certamente não o define. E esta indefinição continuou a provocar acirradas discussões nas esferas matemáticas de então. Que atingiram o auge no século XVII.
É fácil perceber a razão de tanta celeuma. Entendam: não estou afirmando que é fácil resolver o paradoxo, digo apenas que é fácil entender o motivo da discussão ter se tornado tão agressiva. É que ela foi travada no universo da matemática, que até então não aceitava incertezas. Pois neste universo dominado pela lógica, isso mais aquilo considerando aquilo outro resulta nisto aqui e ponto final. Não há espaço para substituir o “e ponto final” por qualquer conjunção coordenativa tipo “mas”, “porém”, “todavia” ou “contudo”. Ponto final é ponto final e temos conversado. Uma vez submetido às leis da lógica, tudo é certo, indiscutível, incontestável. Ou você ousaria negar o fato de que a soma dos ângulos internos de um triângulo, qualquer triângulo, traçado sobre uma superfície plana, é 180º? Não dá. Como ninguém, em seu juízo perfeito, se atreveria contestar o Último Teorema de Fermat (que afirma a impossibilidade da existência de um conjunto de números inteiros, positivos, {x,y,z.n} onde n>2 que satisfaça a relação [x<sup>n</sup> + y<sup>n</sup> = z<sup>n</sup>] ) mesmo sabendo que ele levou mais de três séculos para ser demonstrado. Como diria a saudosa D. Eulina: na matemática é tudo “pão, pão, queijo queijo”. E temos conversado.
Pois acontece que a teoria dos infinitesimais não era congruente com nada disso.
Pois bem: a lógica absoluta da matemática e a possibilidade de comprovar suas afirmações sem deixar pairar dúvidas havia chamado a atenção da Ordem dos Jesuítas justamente na época em que estavam metidos até o pescoço na controvérsia da Reforma, encabeçada por Martinho Lutero, com a divulgação de suas 95 teses protestando (daí a origem do nome deste ramo do cristianismo) contra a Igreja Católica. E quanto mais da matemática sabiam os Jesuítas, mais com ela se encantavam, já que ela acenava com uma solução perfeita para seu maior problema. Pois, raciocinaram os Jesuítas, se conseguissem fazer da teologia uma doutrina com a mesma lógica e infalibilidade da matemática, “poderiam se livrar daqueles incômodos Protestantes que vivem discutindo conosco, porque então nós poderemos provar as coisas” (citação obtida da entrevista de Amir Alexander à NPR, rede de rádio educativa dos EUA, tema de artigo sobre o livro, publicado em NPR books).
É justamente neste cenário de controvérsia (mais política que religiosa, como logo veremos) que aflora a questão dos infinitesimais. E joga água na fervura dos jesuítas. Pois a característica básica da matemática até então conhecida era sua exatidão acima de quaisquer controvérsias. Como afirma Alexander sobre a matemática do século XVII ainda na mesma entrevista: “Ali tudo é conhecido, tudo tem seu lugar e há uma muito bem ordenada hierarquia de resultados. E subitamente, no meio desta ordem, jogam este paradoxo que leva a todos estes resultados estranhos que, basicamente, significam que não se pode confiar na matemática. E se não se pode confiar na matemática, em que mais se pode?”
Definitivamente, a ideia dos infinitesimais não convinha aos Jesuítas. Cujo poder, na Itália do século XVII era enorme. E, baseado neste poder, passaram a sustentar uma batalha epistolar enviando cartas de intimidação a um grupo de matemáticos que incluía alguns dos maiores pensadores italianos da época, como Galileu, Jerônimo Cardan (introdutor das equações algébricas) e Federico Comandino, que flertavam com a teoria dos infinitesimais.
E como no século XVII era altamente desaconselhável assumir uma posição diametralmente oposta à dos Jesuítas, os matemáticos italianos silenciaram sobre os infinitesimais.
Para os Jesuítas o resultado foi um sucesso e deram a batalha por ganha. Mas, para a Itália, foi desastroso. Ainda citando Alexander: “No período anterior ao século XVII e se estendendo até ele, a Itália era a capital da matemática na Europa. Ela abrigava os maiores matemáticos da época e detinha a maior tradição matemática. E, quando os Jesuítas terminaram sua obra, isto acabou. Tudo isto. Na década de 1670 a Itália era um marasmo nos campos da matemática e ciências”.
Entrementes, a Inglaterra enfrentava uma série de sublevações conhecidas como a Guerra Civil Inglesa. As forças que se opunham eram a monarquia, advogada pelos “Royalists” e apoiada pelas classes mais abastadas, e o parlamentarismo, defendido pelos “Parlamentarians” com o apoio das classes menos favorecidas.
As sublevações duraram de 1642 a 1651.
A aristocracia, naturalmente, defendia com unhas e dentes a manutenção da monarquia, que lhes garantia uma posição privilegiada na sociedade, enquanto as classes de menor poder aquisitivo tentavam mudar o regime.
Ambas as correntes contavam com o apoio de alguns intelectuais. Thomas Hobbes, por exemplo, defendia a ideia segundo a qual os homens só podem viver em paz se concordarem em submeter-se a um poder absoluto e centralizado. Para ele, a Igreja cristã e o Estado cristão formavam um mesmo corpo, encabeçado pelo monarca, que teria o direito de interpretar as Escrituras e decidir questões religiosas. Com tais ideias, evidentemente, apoiava a monarquia. Sobre ele, Alexander declarou que: “acreditava que a única forma de restabelecer a ordem era muito semelhante à proposta pelos Jesuítas: erradicar qualquer possibilidade de dissensão. Estabelecer um estado absolutamente lógico, onde as leis do soberano tivessem a força de uma comprovação geométrica”.
Acontece que Thomas Hobbes, além de cientista político, foi também um respeitado matemático. Não era portanto de estranhar que, no campo da matemática, ele se opusesse ferrenhamente a John Wallis, um dos fundadores da Royal Society of London, introdutor do símbolo “∞” para representar o infinito e defensor da ideia do infinitesimal. Durante três décadas ambos mantiveram uma estimulante troca de correspondência na qual Wallis defendia veementemente a teoria do infinitesimal mesclada com suas ideias liberais e democráticas, rigorosamente opostas ao totalitarismo de Hobbes. Disse Wallis em uma de suas cartas: “O que temos que moldar agora é um espaço onde a dissensão seja tolerada, ao menos de forma limitada. Construir uma sociedade e uma ordem social a partir da base e não imposta por uma única lei”.
E foi assim que a matemática, religião e política se entrelaçaram para traçar os rumos da sociedade inglesa. Em 3 de setembro de 1951 a Guerra Civil terminou com Batalha de Worcester vencida pelos parlamentaristas.
Como resultado o Rei Charles I foi julgado e executado, seu filho Charles II foi exilado, o sistema de monarquia absoluta foi substituído pelo parlamentarismo (que, entretanto, manteve a monarquia parlamentar até hoje existente e deu origem ao mote “o rei reina mas não governa”) e rompeu-se o monopólio da Igreja Católica na religião cristã, permitindo que os protestantes assumissem o poder na Irlanda.
Ah, sim, e Sir Thomas Hobbes, que não era bobo nem nada, após ver o Rei Charles I ser executado pelos rebeldes agora no poder, jurou lealdade ao novo regime e renegou suas ideias contra a teoria do infinitesimal.
Com isto John Wallis pôde dar prosseguimento a seu trabalho e estabelecer as bases do cálculo infinitesimal, permitindo que Isaac Newton e Leibniz consolidassem no final dos anos seiscentos um dos mais importantes ramos das ciências matemáticas: o cálculo diferencial e integral.
Mas que diabos tem tudo isto a ver com nosso tema? E onde entra a mecânica quântica?
Bem, primeiro vamos supor que a vitória dos jesuítas na batalha do infinitesimal fosse completa, ou seja, que além de banir futuros estudos e desenvolvimentos do cálculo infinitesimal na Itália, eles o conseguissem também na Inglaterra e no restante da Europa.
Isto aumentaria, e muito, sua influência não apenas sobre o mundo das ciências mas, sobretudo, sobre o mundo da política.
Neste último, poderiam impor seu ideal de sociedade hierárquica na Inglaterra e manter a monarquia absoluta.
Se isto efetivamente ocorresse, o mundo de hoje certamente seria muito diferente e, sobretudo, muito menos democrático. As sociedades seriam hierarquias rígidas, não haveria espaço para a dissensão nem liberdade. Inclusive liberdade para a pesquisa científica.
E no campo das ciências? Bem, a primeira consequência é que teria sido evitado – ou pelo menos postergado por um bom tempo – o estabelecimento do cálculo infinitesimal. E se levarmos em conta que este ramo da matemática foi essencial para praticamente todo o desenvolvimento tecnológico moderno, caso tivesse morrido no nascedouro como queriam os Jesuítas, afirma Alexander que não teríamos “desde os telefones celulares às estações de rádio, de aviões a carros e trens”, já que todos eles foram fundamentalmente dependentes da técnica dos infinitesimais.
O que mostra como pressões contra ou a favor do desenvolvimento de teorias matemáticas e científicas podem influenciar não apenas o perfil tecnológico de uma sociedade como também seu perfil político e social. E comprova algo que deveria ser evidente desde a batalha dos infinitesimais e que, se fosse, teria evitado muito aborrecimento a Charles Darwin duzentos anos depois: misturar ciência com religião não costuma dar bom resultado.
E é justamente aí que entra a mecânica quântica. Que, assim como o cálculo infinitesimal foi bloqueado décadas seguidas pelos Jesuítas, teve seu desenvolvimento emperrado durante quase toda a metade do século passado devido principalmente à oposição de um cientista. Mas um cientista tão eminente, tão respeitado e tão inegavelmente genial (mas que nem por isso estava certo cem por cento do tempo) que poucos se atreviam a dele discordar. Cientista esse que se recusou a aceitar o “princípio da incerteza”, um dos pilares da mecânica quântica, afirmando categoricamente que “deus não joga dados com o universo”.
Esse cientista, de valor inegável e uma das maiores mentes do século passado foi Albert Einstein.
Portanto, cuidado. Da mesma forma que um relógio parado está rigorosamente certo duas vezes por dia, mentes geniais podem eventualmente estar erradas. E, quando o objeto da pesquisa é absolutamente novo – como os infinitesimais no século XVII e a mecânica quântica no século XX – convém manter a mente aberta e as pesquisas inteiramente livres de qualquer influência de fundo político ou religioso.
B. Piropo
PS I: O livro “Infinitesimal: How a Dangerous Mathematical Theory Shaped the Modern World” de Amir Alexander está à venda na Amazon.Com. A edição eletrônica custa módicos US$ 12,99 e a impressa US$ 20,53 mais o custo da remessa. Ainda não terminei de lê-lo, mas estou gostando muito.
PS II: Não recebo qualquer benefício ou comissão sobre as vendas. Mas recomendo (o livro, não a comissão).
Até o próximo Melhor do Planeta
Fonte: http://www.techtudo.com.br/artigos/noticia/2014/05/mecanica-quantica-infinitesimais-e-democracia.html
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